O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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O Evangelho por Emmanuel — Volume V — 2ª Parte ©

Textos paralelos de Atos dos apóstolos e Paulo e Estêvão

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Encontro com João Marcos e saída de Jerusalém  n

Barnabé e Saulo, tendo cumprido o serviço, regressaram de Jerusalém, levando consigo a João, cognominado Marcos. — (Atos 12:25)


20 A ausência eventual de Simão transformara a estrutura da obra evangélica. Aos dois recém-chegados tudo parecia inferior e diferente. Barnabé, sobretudo, notara algo em particular. É que o filho de Alfeu, elevado à chefia provisória, não os convidou para se hospedarem na igreja. À vista disso, o discípulo de Pedro foi procurar a casa de sua irmã Maria Marcos, mãe do futuro evangelista, que os recebeu com grande júbilo. Saulo sentiu-se bem no ambiente de fraternidade pura e simples. Barnabé, por sua vez, reconheceu que a casa da irmã se tornara o ponto predileto dos irmãos mais dedicados ao Evangelho. Ali se reuniam, à noite, às ocultas, como se a verdadeira igreja de Jerusalém houvesse transferido sua sede para um reduzido círculo familiar. Observando as assembleias íntimas do santuário doméstico, o ex-rabino recordou a primeira reunião de Damasco. Tudo era afabilidade, carinho, acolhimento. A mãe de João Marcos era uma das discípulas mais desassombradas e generosas. Reconhecendo as dificuldades dos irmãos de Jerusalém, não vacilara em colocar seus bens à disposição de todos os necessitados, nem hesitou em abrir as portas para que as reuniões evangélicas, em sua feição mais pura, não sofressem solução de continuidade.


21 A palestra de Saulo impressionou-a vivamente. Seduziam-na, sobretudo, as descrições do ambiente fraternal da igreja antioquiana, cujas virtudes Barnabé não cessava de glosar instantemente.

Maria expôs ao irmão o seu grande sonho. Queria dar o filho, ainda muito jovem, a Jesus. De há muito vinha preparando o menino para o apostolado. Todavia, Jerusalém afogava-se em lutas religiosas, sem tréguas. As perseguições surgiam e ressurgiam. A organização cristã da cidade experimentava profundas alternativas. Só a paciência de Pedro conseguia manter a continuidade do ideal divino. Não seria melhor que João Marcos se transferisse para Antioquia, junto do tio? Barnabé não se opôs ao plano da irmã entusiasmada. O jovem, a seu turno, seguia as conversações, mostrando-se satisfeito. Chamado a opinar, Saulo percebeu que os irmãos deliberavam sem consultar o interessado. O rapaz acompanhava os projetos, sempre jovial e sorridente. Foi aí que o ex-doutor da Lei, profundo conhecedor da alma humana, desviou a palavra, procurando interessá-lo mais diretamente.

— João — disse bondosamente —, sentes, de fato, verdadeira vocação para o ministério?

— Sem dúvida! — confirmou o adolescente algo perturbado.

— Mas, como defines teus propósitos? — tornou a perguntar o ex-rabino.

— Penso que o ministério de Jesus é uma glória — respondeu um tanto acanhado sob o exame daquele olhar ardente e inquiridor.


22 Saulo refletiu um instante e sentenciou:

— Teus intuitos são louváveis, mas é preciso não esqueceres que a mínima expressão de glória mundana apenas chega após o serviço. Se assim acontece no mundo, que não será com o trabalho para o Reino do Cristo? Mesmo porque, na Terra, todas as glórias passam e a de Jesus é eterna!…

O jovem anotou a observação e, embora desconcertado pela profundez dos conceitos, acrescentou:

— Sinto-me preparado para os labores do Evangelho e, além disso, mamãe faz muito gosto que eu aprenda os melhores ensinamentos nesse sentido, a fim de tornar-me um pregador das verdades de Deus.


23 Maria Marcos olhou o filho cheia de maternal orgulho. Saulo percebeu a situação, teve um dito alegre e depois acentuou:

— Sim, as mães sempre nos desejam todas as glórias deste e do outro mundo. Por elas, nunca haveria homens perversos. Mas, no que nos diz respeito, convém lembrar as tradições evangélicas. Ainda ontem, lembrei a generosa inquietação da esposa de Zebedeu, ansiosa pela glorificação dos filhinhos!… ( † ) Jesus lhe recebeu os anseios maternais, mas, não deixou de lhe perguntar se os candidatos ao Reino estavam devidamente preparados para beber do seu cálice… E, ainda agora, vimos que o cálice reservado a Tiago continha vinagre tão amargo quanto o da cruz do Messias!…


24 Todos silenciaram, mas Saulo continuou em tom prazenteiro, modificando a impressão geral:

— Isto não quer dizer que devamos desanimar ante as dificuldades, para aliciar as glórias legítimas do Reino de Jesus. Os obstáculos renovam as forças. A finalidade divina deve representar nosso objetivo supremo. Se assim pensares, João, não duvido de teus futuros triunfos.

Mãe e filho sorriram tranquilos.

Ali mesmo, combinaram a partida do jovem, em companhia de Barnabé. O tio discorreu ainda sobre as disciplinas indispensáveis, o espírito de sacrifício reclamado pela nobre missão. Naturalmente, se Antioquia representava um ambiente de profunda paz, era também um núcleo de trabalhos ativos e constantes. João precisaria esquecer qualquer expressão de esmorecimento, para entregar-se, de alma e corpo, ao serviço do Mestre com absoluta compreensão dos deveres mais justos.

O rapaz não hesitou nos compromissos, sob o olhar amorável de sua mãe, que lhe buscava amparar as decisões com a coragem sincera do coração devotado a Jesus.


25 Dentro de poucos dias os três demandavam a formosa cidade do Orontes.  † 

Enquanto João Marcos extasiava-se na contemplação das paisagens, Saulo e Barnabé entretinham-se em longas palestras, relativamente aos interesses gerais do Evangelho. O ex-rabino voltava sumamente impressionado com a situação da igreja de Jerusalém. Desejaria sinceramente ir até Jope, para avistar-se com Simão Pedro. No entanto, os irmãos dissuadiram-no de o fazer. As autoridades mantinham-se vigilantes. A morte do Apóstolo chegara a ser reclamada por vários membros do Sinédrio e do Templo. Qualquer movimento mais importante, no caminho de Jope, poderia dar azo à tirania dos prepostos herodianos.

— Francamente — dizia Saulo a Barnabé, mostrando-se apreensivo —, regresso de ânimo quase abatido aos nossos serviços de Antioquia. Jerusalém dá impressão de profundo desmantelo e acentuada indiferença pelas lições do Cristo. As altas qualidades de Simão Pedro, na chefia do movimento, não me deixam dúvidas; mas precisamos cerrar fileiras em torno dele. Mais que nunca me convenço da sublime realidade de que Jesus veio ao que era seu, mas não foi compreendido.


26 — Sim — obtemperava o ex-levita de Chipre, desejoso de dissipar as apreensões do companheiro —, confio, antes de tudo, no Cristo; depois, espero muito de Pedro…

— Entretanto — insinuava o outro sem vacilar —, precisamos considerar que em tudo deve existir uma pauta de equilíbrio perfeito. Nada poderemos fazer sem o Mestre, mas não é lícito esquecer que Jesus instituiu no mundo uma obra eterna e, para iniciá-la escolheu doze companheiros. Certo, estes nem sempre corresponderam à expectativa do Senhor; contudo, não deixaram de ser os escolhidos. Assim, também precisamos examinar a situação de Pedro. Ele é, sem contestação, o chefe legítimo do colégio apostólico, por seu espírito superior afinado com o pensamento do Cristo em todas as circunstâncias; mas, de modo algum poderá operar sozinho. Como sabemos, dos doze amigos de Jesus, quatro ficaram em Jerusalém, com residência fixa. João foi obrigado a retirar-se; Filipe compelido a abandonar a cidade, com a família; Tiago volta aos poucos para as comunidades farisaicas. Que será de Pedro se lhe faltar a cooperação devida?


27 Barnabé pareceu meditar seriamente.

— Tenho uma ideia que parece vir de Mais Alto — disse o ex-doutor da Lei sinceramente comovido.

E continuou:

— Suponho que o Cristianismo não atingirá seus fins, se esperarmos tão só dos israelitas anquilosados no orgulho da Lei. Jesus afirmou que seus discípulos viriam do Oriente e do Ocidente. ( † ) Nós, que pressentimos a tempestade, e eu, principalmente, que a conheço nos seus paroxismos, por haver desempenhado o papel de verdugo, precisamos atrair esses discípulos. Quero dizer, Barnabé, que temos necessidade de buscar os gentios onde quer que se encontrem. Só assim reintegrar-se-á o movimento em função de universalidade.

O discípulo de Simão Pedro fez um movimento de espanto.


28 O ex-rabino percebeu o gesto de estranheza e ponderou de modo conciso:

— É natural prever com isso muitos protestos e lutas enormes; no entanto, não consigo vislumbrar outros recursos. Não é justo esquecer os grandes serviços da igreja de Jerusalém aos pobres e necessitados, e creio mesmo que a assistência piedosa dos seus trabalhos tem sido, muitas vezes, sua tábua de salvação. Existem, porém, outros setores de atividade, outros horizontes essenciais. Poderemos atender a muitos doentes, ofertar um leito de repouso aos mais infelizes; mas sempre houve e haverá corpos enfermos e cansados na Terra. Na tarefa cristã, semelhante esforço não poderá ser esquecido, mas a iluminação do espírito deve estar em primeiro lugar. Se o homem trouxesse o Cristo no íntimo, o quadro das necessidades seria completamente modificado. A compreensão do Evangelho e da exemplificação do Mestre renovaria as noções de dor e sofrimento. O necessitado encontraria recursos no próprio esforço, o doente sentiria, na enfermidade mais longa, um escoadouro das imperfeições; ninguém seria mendigo, porque todos teriam luz cristã para o auxílio mútuo, e, por fim, os obstáculos da vida seriam amados como corrigendas benditas de Pai amoroso a filhos inquietos.


29 Barnabé pareceu entusiasmar-se com a ideia. Mas, depois de pensar um minuto, acrescentou:

— Entretanto, esse empreendimento não deveria partir de Jerusalém?

— Penso que não — sentenciou Saulo, de pronto. — Seria absurdo agravar as preocupações de Pedro. Excede a tudo esse movimento de pessoas necessitadas e abatidas, convergentes de todas as províncias, a lhe baterem às portas. Simão está impossibilitado para o desdobramento dessa tarefa.


30 — Mas, e os outros companheiros? — inquiriu Barnabé revelando espírito de solidariedade.

— Os outros, certo, hão de protestar. Principalmente agora, que o judaísmo vai absorvendo os esforços apostólicos, é justo prever muitos clamores. Contudo, a própria Natureza dá lições neste sentido. Não clamamos tanto contra a dor? E quem nos traz maiores benefícios? Às vezes, nossa redenção está naquilo mesmo que antes nos parecia verdadeira calamidade. 31 É indispensável sacudir o marasmo da instituição de Jerusalém, chamando os incircuncisos, os pecadores, os que estejam fora da Lei. De outro modo dentro de alguns poucos anos, Jesus será apresentado como aventureiro vulgar. Naturalmente, depois da morte de Simão, os adversários dos princípios ensinados pelo Mestre acharão grande facilidade em deturpar as anotações de Levi. A Boa Nova será aviltada e, se alguém perguntar pelo Cristo, daqui a cinquenta anos, terá como resposta que o Mestre foi um criminoso comum, a expiar na cruz os desvios da vida. Restringir o Evangelho a Jerusalém será condená-lo à extinção, no foco de tantos dissídios religiosos, sob a política mesquinha dos homens. 32 Necessitamos levar a notícia de Jesus a outras gentes, ligar as zonas de entendimento cristão, abrir estradas novas… Será mesmo justo que também façamos anotações do que sabemos de Jesus e de sua divina exemplificação. Outros discípulos, por exemplo, poderiam escrever o que viram e ouviram, pois, com a prática, vou reconhecendo que Levi não anotou mais amplamente o que se sabe do Mestre. Há situações e fatos que não foram por ele registrados. Não conviria também que Pedro e João anotassem suas observações mais íntimas? Não hesito em afirmar que os pósteros hão de rebuscar muitas vezes a tarefa que nos foi confiada.


33 Barnabé rejubilava-se com perspectivas tão sedutoras. As advertências de Saulo eram mais que justas. Haveria que prestar informações amplas ao mundo.

— Tens razão — disse admirado —, precisamos pensar nesses serviços, mas como?

— Ora — esclareceu Saulo tentando aplainar as dificuldades —, se quiseres chefiar qualquer esforço neste sentido, podes contar com a minha cooperação incondicional. Nosso plano seria desenvolvido na organização de missões abnegadas, sem outro fito que servir, de forma absoluta, à difusão da Boa Nova do Cristo. Começaríamos, por exemplo, em regiões não de todo desconhecidas, formaríamos o hábito de ensinar as verdades evangélicas aos mais vários agrupamentos; em seguida, terminada essa experiência, demandaríamos outras zonas, levaríamos a lição do Mestre a outras gentes…


34 O companheiro ouvia-o, afagando sinceras esperanças. Tomado de novo ânimo, disse ao convertido de Damasco, esboçando o primeiro número do programa:

— De há muito, Saulo, tenho necessidade de voltar à minha terra, a fim de resolver certos problemas de família. Quem sabe poderíamos iniciar o serviço apostólico através das aldeias e cidades de Chipre?  †  Conforme o resultado, prosseguiríamos por outras zonas. Estou informado de que a região em que demora Antioquia da Pisídia  †  é habitada por gente simples e generosa, e suponho que colheríamos belos resultados no empreendimento.

— Poderás contar comigo — respondeu Saulo de Tarso, resoluto. — A situação requer o concurso de irmãos corajosos e a igreja do Cristo não poderá vencer com o comodismo. Comparo o Evangelho a um campo infinito, que o Senhor nos deu a cultivar. Alguns trabalhadores devem ficar ao pé dos mananciais, velando-lhes a pureza, outros revolvem a terra em zonas determinadas; mas não há dispensar a cooperação dos que precisam empunhar instrumentos rudes, desfazer cipoais intensos, cortar espinheiros para ensolarar os caminhos.


35 Barnabé reconheceu a excelência do projeto, mas considerou:

— Todavia, temos ainda a examinar a questão do dinheiro. Tenho alguns recursos, mas insuficientes para atender a todas as despesas. Por outro lado, não seria possível sobrecarregar as igrejas…

— Absolutamente! — adiantou o ex-rabino — onde estacionarmos, poderei exercer o meu ofício. Por que não? Qualquer aldeia paupérrima tem sempre teares de aluguel. Montarei, então, uma tenda móvel!

Barnabé achou graça no expediente e ponderou:

— Teus sacrifícios não serão pequenos. Não receias as dificuldades imprevisíveis?

— Por quê? — interrogou Saulo com firmeza. — Certo, se Deus não me permitiu a vida em família foi para que me dedicasse exclusivamente ao seu serviço. Por onde passarmos, montaremos a tenda singela. E onde não houver tapetes a consertar e a tecer, haverá sandálias.


36 O discípulo de Simão Pedro entusiasmou-se. O resto da viagem foi dedicado aos projetos da futura excursão. Havia, entretanto, uma coisa a considerar. Além da necessidade de submeter o plano à aprovação da igreja de Antioquia, era indispensável pensar no jovem João Marcos. Barnabé procurou interessar o sobrinho nas conversações. Em breve, o rapaz convenceu-se de que deveria incorporar-se à missão, caso a assembleia antioquiana não a desaprovasse Interessou-se por todas as minúcias do programa tracejado. Seguiria o trabalho de Jesus, fosse onde fosse.

— E se houver muitos obstáculos? — perguntou Saulo avisadamente.

— Saberei vencê-los — respondeu João, convicto.

— Mas é possível venhamos a experimentar dificuldades sem conta — continuava o ex-rabino preparando-lhe o espírito. Se o Cristo, que era sem pecado, encontrou uma cruz entre apodos e flagelos, quando ensinava as verdades de Deus, que não devemos esperar em nossa condição de almas frágeis e indigentes?

— Hei de encontrar as forças necessárias.

Saulo contemplou-o, admirado da firme resolução que suas palavras deixaram transparecer, e observou:

— Se deres um testemunho tão grande como a coragem que revelas, não tenho dúvidas quanto à grandeza de tua missão.


37 Entre confortadoras esperanças, o projeto terminou com formosas perspectivas de trabalho para os três. […]


Emmanuel



[1] O texto de Atos registra de maneira concisa o encontro de Paulo, Barnabé e João Marcos, que viria a ser o futuro evangelista. O texto de Emmanuel revela a relação de parentesco entre Barnabé e João Marcos, as razões que motivaram o jovem João a seguir com os dois emissários de retorno para Antioquia e as preocupações de Paulo, com os desafios que enfrentariam e que, mais tarde, levariam João a abandonar a comitiva, retornando ao lar materno, conforme Atos, 13:13.

(Paulo e Estêvão, FEB Editora. Segunda parte. Capítulo 4, pp. 285 a 292. Indicadores 20 a 37)


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