O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Alma e Vida — Maria Dolores


25

Nesga de prova

1 Foi num cenário de atualidade,
No recinto de luxo, o público à vontade,
Delirava e aplaudia
A jovem que aliava harmonia e beleza,
Qual se fosse uma flor da natureza,
Enquanto se despia…


2 A música ambiente
Escorria no espaço, docemente.


3 A atriz desajeitada
Que era o enfeite daquela madrugada,
No palco debruado a cores fascinantes,
Embora a movimentação cadenciada,
Passo leve de cisne pequenino,
Mantinha os olhos baixos,
Tentando recobrir o corpo alabastrino
Com os cabelos tecendo longos cachos,
Como se desejasse
Esconder no rubor da própria face
A dor com que guardava o seu próprio destino.


4 O quadro da nudez artística surgia
Apenas por instantes
E, regressando a moça aos bastidores,
Um senhor de alto porte
Destacou-se de um grupo de senhores…
5 Homem moço a exibir gestos brejeiros
Parecia chegando aos quarenta janeiros…
Ausenta-se da sala e aguarda na saída
A jovem que desponta, ainda mais bela,
Nobremente vestida.
6 Embora revelando fino trato,
Ele avança, zeloso, e diz à ela
Quanto lhe admirara a beleza e o recato
Na cena colorida
Que ela marcara de ternura e vida.


7 Ela agradece a saudação
E procura afastar-se;
Ele, porém, sem mais disfarce
Da educação que mostra atravessa o limite,
Faz-lhe estranho convite,
8 Mas a jovem lhe fala, olhos em pranto:
— Não me ofenda, senhor,
Tenho somente dezessete anos…
Espero para breve um casamento
E se aceito esta ingrata profissão
É pelo pagamento
Para a manutenção
De minha pobre mãe tuberculosa…


9 E acentuou mais triste e mais chorosa:
— Ainda agora fui chamada
Para vê-la, talvez, na despedida…
Um longo tratamento foi inglório…
Minha mãe, meu senhor,
Agoniza, exilada em sanatório.


10 Ela contrata um táxi, apressada…
O cavalheiro sob enorme assombro,
Liga o seu próprio carro e segue-a na largada.


11 Entra a menina no hospital
E ouve as opiniões de estimada enfermeira,
Depois, segue ligeira
Para o vasto aposento,
Onde a mãezinha, em rude sofrimento,
Aguarda a hora derradeira…


12 Entre as duas, o olhar é de angústia e de pranto,
Repleto de aflição, de amor e espanto…
13 Mas nisso o cavalheiro esbaforido,
À custa do obséquio de um porteiro
Que peitara a dinheiro.
Rápido, alcança o quarto em forçado alarido…
14 Vendo, porém, a dama quase morta,
Assusta-se, recua e quer voltar à porta,
Mas a doente ganha forças
E vencendo a terrível dispneia,
Assombrada lhe diz:
— Agenor!… Agenor!…
Não fujas, nem desprezes nossa dor!…


15 A santa mãe de Deus
É que te trouxe aqui,
Não te vás!… Nada temos contra ti!…
Vinte anos passaram de saudade,
O tempo para mim foi uma eternidade…
Esperei-te em serviço,
Sem jamais esquecer o nosso compromisso,
Até que o corpo frágil me traiu,
A saúde caiu
Mas nada me faltou…
16 Nossa filha, empregada de escritório,
É meu apoio neste sanatório…
Mas agora… Agenor…
A morte já vem perto…
Perdoa-me se levo o teu amor
No meu peito cansado, enfermiço e deserto…
17 Mas… se posso fazer-te algum apelo,
Ampara a nossa filha,
Protege-a, sob a força de teu zelo…
Jovem, quase menina,
Ela é a nossa heroína
Que nunca me deixou sem remédio e sem pão…
18 Se é que vieste ver-me,
Vem por Deus a fim de recebê-la,
Como sendo no mundo a nossa estrela
E o nosso coração…


19 O cavalheiro pálido, suspenso,
Enxuga as próprias lágrimas num lenço.
Talvez pela energia despendida,
A senhora calou-se em paz indefinida…
Aquele corpo triste, enfim, morrera,
Guardando da alma ausente um sorriso de cera.
20 Ante quatro enfermeiras espantadas
O homem agora em pranto
Humildemente busca a menina que chora,
Toma-lhe a mão da qual não mais se desvencilha,
Abraçam-se depois,
Em soluços os dois…
E olhos postos talvez nas brumas do passado
O cavalheiro transformado
Reconhece que achara a sua própria filha!…


Maria Dolores


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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