O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Almas em desfile — Hilário Silva — F. C. Xavier / Waldo Vieira — 1ª Parte


23

O funcionário condenado

I


1 Envergonhava-se.

Tivera funerais pomposos.

Mas não valia a capa protetora dos amigos desencarnados.

2 Deixara nome, tradição, legados, necrológios brilhantes.

E, sem dúvida, distribuíra fartas sobras da existência regalada, confortando a muitos.

3 No fundo, porém, João Martinho não se sentia bem consigo mesmo.

Roubara dos parentes, num processo de herança, para começar a fortuna. E depois, no comércio, fora homem de memória curta e mão leve.

4 Isso tudo, agora, era assim como cravo de fogo enterrado na consciência.

“Martinho, você foi hoje carinhosamente lembrado na Terra.”

“Martinho, alguém está agradecendo as suas doações.”

5 Amigos revezavam-se, ofertando-lhe notícias confortadoras, mas sempre recebiam estas respostas lamentosas:

“Sim, mas eu furtei.”

“Sim, mas fui um ladrão.”

6 Era desse modo que o pensamento dele reagia.

Contudo, ante o bem que fizera, estava perdoado. Perdoado por todos. Entretanto, por dentro não se desculpava.

7 Aumentando a cultura espiritual, não aguentou as acusações silenciosas que lhe nasciam da cabeça, como borralho de fogão sereno, e pediu o retorno. Recomeçar era a grande esperança.

8 E Martinho recomeçou…


II


1 Decorridos quarenta anos, João Martinho podia ser visto em novo corpo de carne.

Funcionário de banco, não conseguia realizar os próprios ideais.

2 Parecia um devedor insolvável, diante da família.

Desde cedo, começara a trabalhar, ajudando o pai doente.

3 E depois que o pai desencarnou, foi o amparo das irmãs menores. Devia fazer prodígios para não se endividar no fim do mês. E, após o casamento das duas manas mais velhas, caíra enferma a própria mãezinha, com paraplegia irremediável.

4 João procedia corretamente.

Tudo a tempo e a hora.

5 Surgiu, porém, a ocasião em que passou a sentir prolongada agonia moral.

Um companheiro, que lhe partilhava as responsabilidades em serviço, desviava somas enormes. Emitia vales e forjava documentos falsos, cujas cópias atirava na cesta.

6 Antevendo complicações futuras, Martinho retirava todos os papéis comprometedores, do depósito de lixo, e os guardava.

7 Rara a semana em que não chegava a casa, com várias peças na direção do arquivo. Possuía no aposento um cofre particular, com fundo falso, cujo segredo somente ele, Martinho, conhecia.

8 E nesse último escaninho amontoava as provas da culpabilidade do amigo infeliz.

9 Em sã consciência, não podia formular acusações prematuras. O rapaz talvez tivesse “costas quentes”, e poderia ser considerado caluniador “se levantasse a lebre”, antes da hora. Era preciso, no entanto, defender-se. Uma hora difícil poderia chegar.

10 Durante quatro meses, a situação perdurava inquietante, quando veio o inesperado…

O moço leviano conheceu a morte num desastre, em noite de farra.


III


1 Era setembro…

Martinho pensou no imperativo do esclarecimento.

Mas seria justo acusar um morto, do qual ninguém lhe pedia contas?

Calou-se e esperou…

2 Eis que surge, porém, o fim de ano.

Balanço ativo.

Martinho preparou a papelada para qualquer circunstância.

3 Quando a tomada de contas no banco ia em meio, o correto funcionário sofre um choque profundo.

A casa humilde em que reside é assaltada, enquanto assiste à desencarnação da mãezinha no hospital.

4 Desolado, João verifica que o assaltante carregara todos os objetos de valor, inclusive o cofre em que deitava os documentos íntimos.

5 Desconfiança terrível incendeia-lhe o crânio.

Decerto, o colega morto tinha cúmplices.

E os cúmplices haviam fingido uma “limpa” em regra.

6 Desfigurado, volta ao banco, depois de haver solucionado os problemas do funeral materno, e encontra a bomba estourada.

O diretor chama-o a falas.

7 Naturalmente esperara dois dias, em consideração à sua dor de filho.

Mas coloca o assunto em telas claras.

8 João foi responsabilizado pelo desfalque de um milhão e duzentos mil cruzeiros.

Martinho alarmou-se, rogou, reclamou e chorou, mas não conseguiu articular qualquer defesa.


IV


1 Recolhido à cadeia correcional, onde foi condenado a dois anos de prisão, depois de rumoroso processo, Martinho tentou o suicídio.

2 Amigos, contudo, puseram-lhe nas mãos a literatura espírita.

E Martinho devorou livros, narrativas, conceitos e ideias…

Acalmou-se.

3 Descobriu o poder da prece.

Acolheu a prova, como o boi recebe a canga.

4 Aceitou a reencarnação. No íntimo, estava convicto de que fora vítima desse ou daquele companheiro interessado em livrar-se da justiça, mas compreendeu que devia perdoar.

5 Ainda assim, a mudança de vida alterou-lhe a saúde.

A tuberculose ganhava área e o coração fatigado parecia motor falhando…

6 No dia garoento em que saiu do cárcere, depois de cumprida a pena, era uma sombra.

Raros fios de cabelos desciam da calva procurando ocultar-lhe a orelha.

7 Caminhava dificilmente.

Tossia.

Suspirava por um caldo quente.

8 Cambaleando quase, atingiu a moradia da única irmã casada que ainda lhe possibilitava ligação, mas recebeu apelo injusto.

9 — João, — disse ela, — aqui estão vinte cruzeiros para você. É tudo o que eu tenho, mas não posso hospedá-lo. Meu marido não compreenderia. Temo ofensas. Volte amanhã. Conversarei com ele hoje à noite e veremos o que será possível fazer.

10 Martinho, humilhado, foi ao bar próximo.

Tomou um café e começou a perambular.

Receava buscar amigos.

11 Cansado, trêmulo, vendo que a noite baixava, procurou, procurou… até que viu velha casa abandonada num terreno baldio de bairro pobre.

Conseguiu jornais velhos, aqui e ali, e entrou, disposto a dormir.

12 Num canto de parede semiderruída tropeçou em algo.

Abaixou-se.

Surpreendido, tateou o objeto.

13 Era um cofre, sem dúvida! Carregou-o para local menos escuro.

Espantado, verificou que era o antigo cofre de sua propriedade, largado ali por alguém…

14 Fora violado, escancarado, mas percebeu que o fundo falso não fora aberto.

Gastou tempo e força e acabou descerrando o escaninho.

15 E todos os documentos que o inocentavam apareceram.

Agora, percebia que toda a suspeita em torno dos amigos do Banco era realmente infundada.

Fora pilhado, sim, por malfeitores vulgares.

16 Martinho, fatigado, contemplou os papéis que lhe teriam sido preciosos, anos antes.

Deitou-se no piso escalavrado. Releu todos, um por um.

Em seguida, acendeu um fósforo e queimou-os em monte.

17 Escurecera de todo.

Por muito tempo, Martinho orou e pensou…

E, por fim, a tosse.

Depois, o silêncio.

18 Martinho enlanguescera.

E, a princípio, só as formigas e os cães tomaram conhecimento de que havia no local um corpo morto, como feixe de ossos moles renteando um punhado de cinzas.


Hilário Silva


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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