O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano IV — Setembro de 1861.

(Idioma francês)

O estilo é o homem.

(Sumário)

POLÊMICA ENTRE VÁRIOS ESPÍRITOS.

(Sociedade Espírita de Paris.)  † 

1. — Na sessão da Sociedade, de 19 de julho do corrente ano, o Espírito Lamennais deu espontaneamente a dissertação que se segue, sobre o aforismo de Buffon: O estilo é o homem, por intermédio do Sr. Didier, médium. Julgando-se atacado, Buffon replicou alguns dias mais tarde, servindo-se do Sr. d’Ambel. Depois, sucessivamente, o Visconde de Launay (Sra. Delphine de Girardin), Bernardin de Saint-Pierre e outros entraram na liça. É esta polêmica, tão curiosa quanto instrutiva, que reproduzimos integralmente. Notar-se-á que não foi provocada, nem premeditada e que cada Espírito veio espontaneamente nela tomar parte. Lamennais abriu a discussão; os outros o seguiram.


2. DISSERTAÇÃO DE LAMENNAIS.

(Médium – Sr. A. Didier.)

Há no homem um fenômeno muito estranho, a que chamo de fenômeno dos contrastes. Refiro-me, antes de tudo, às naturezas de escol. De fato as encontrareis no mundo dos Espíritos, cujas obras poderosas divergem estranhamente da vida privada e dos hábitos de seus autores. Disse o Sr. Buffon: O estilo é o homem. Infelizmente, esse grão-senhor da elegância e do estilo encarava os demais autores exclusivamente do seu ponto de vista. Aquilo que podia perfeitamente aplicar-se a ele está longe de ser aplicado a todos os outros escritores. Tomamos aqui o vocábulo estilo em sentido mais amplo e na sua mais larga acepção. Em nossa opinião, o estilo será a maneira grandiosa, a forma mais pura pela qual o homem apresentará suas ideias. Todo o gênio humano está aqui, diante de nós e, com uma vista d’olhos, contemplamos todas as obras da inteligência humana: poesia na arte, na literatura e na Ciência. Longe de dizer como Buffon: O estilo é o homem, talvez diremos, de maneira menos concisa, menos significativa, que o homem, por sua natureza mutável, difusa, contestadora e revoltada, muitas vezes escreve contrariamente à sua natureza original, às suas primitivas inspirações. Direi mesmo mais: em oposição às suas crenças.

Muitas vezes, lendo as obras de alguns dos grandes gênios de um ou de outro século, nós nos dizemos: Que pureza! Que sensibilidade! Que crença profunda no progresso! Que grandeza! Depois se sabe que o autor, longe de ser o autor moral de suas obras, não é senão o autor material, imbuído de prejuízos e ideias preconcebidas. Aí está um grande fenômeno, não apenas humano, mas espírita.

Muito frequentemente, pois, o homem não se reflete em suas obras. Diremos, também, quantos poetas debilitados, embrutecidos, e quantos artistas desiludidos sentem, de repente, uma centelha divina a iluminar-lhes a inteligência! Ah! é que então o homem escuta algo que não vem dele mesmo; ouve o que o profeta Isaías chamava o pequeno sopro, e que nós chamamos os Espíritos. Sim, eles sentem em si essa voz sagrada, mas, esquecendo Deus e a sua luz, a atribuem a si mesmos; recebem a graça na arte como outros a recebem na fé, e algumas vezes ela toca os que pretendem negá-la.


Lamennais. n


3. RÉPLICA DE BUFFON.

(Médium – Sr. d’Ambel.)

Disseram que fui um gentil-homem das letras e que meu estilo, muito apuradinho, cheirava a pó-de-arroz e a tabaco da Espanha. Não é a consagração mais certa dessa verdade: O estilo é o homem? Embora tenham exagerado um pouco, representando-me com a espada ao lado e a pena à mão, confesso que gostava das belas coisas, das roupas adornadas com lantejoulas, das rendas e dos casacos vistosos, em suma, de tudo quanto fosse elegante e delicado. É, pois, muito natural que sempre me vestisse com elegância, razão por que meu estilo traz o sinete do bom-tom, esse perfume de boa companhia que se encontra igualmente em nossa grande Sévigné. Que quereis? Sempre preferi os saraus e os pequenos salões das damas elegantes aos cabarés e às assembleias tumultuosas de baixa categoria. Permitir-me-eis, pois, apesar da opinião emitida por vosso contemporâneo Lamennais, manter meu judicioso aforismo, apoiando-o com alguns exemplos tomados entre vossos autores e filósofos modernos.

Uma das desgraças de vosso tempo é que muitos fizeram da pena uma profissão. Mas deixemos esses artistas da pena que, semelhantes aos artistas das palavras, escrevem indiferentemente pró ou contra tal ideia, conforme são pagos, e gritando segundo o tempo: Viva o rei! Viva a Liga!  n Deixemo-los. Esses não são, para mim, autores sérios. Vejamos, abade: não vos ofendais se tomo a vós mesmo como exemplo. Vossa vida, bem ou mal fundamentada, não se reflete sempre em vossas obras? E da indiferença em matéria de religião às palavras de um crente, que contraste, como dizeis! Todavia, vosso tom doutoral é tão categórico, tão absoluto, numa como noutra dessas obras. Haveis de concordar que sois bilioso, padre, e destilais vossa bile em amargos lamentos, em todas as belas páginas que deixastes. Em sobrecasaca abotoada, como em sotaina, ficastes desclassificado, meu pobre Lamennais. Ora, vamos, não vos zangueis, mas convinde comigo que o estilo é o homem.

Se passo de Lamennais a Scribe, o homem feliz se reflete nas tranquilas e pacíficas comédias de costumes. Ele é alegre, feliz e sensível: semeia a sensibilidade, a alegria e a felicidade em suas obras. Nele, jamais o drama, jamais o sangue; apenas alguns duelos sem perigo, para punir o traidor e o culpado.

Vede em seguida Eugène Sue, o autor dos Mistérios de Paris. É forte como seu príncipe Rodolfo; como ele, aperta em sua luva amarela a mão calejada do operário e, também como ele, é o advogado das causas populares.

Vede o vosso Dumas vagabundo, malbaratando a vida e a inteligência; indo do polo sul ao polo norte tão facilmente quanto seus famosos mosqueteiros; fazendo-se conquistador com Garibaldi e indo da intimidade do Duque de Orléans aos pedintes napolitanos; fazendo romances com a história e pondo a história em romances.

Vede as obras orgulhosas de Victor Hugo, esse protótipo do orgulho encarnado. Eu, eu, diz Hugo poeta; eu, eu, diz Hugo em seu rochedo de Jersey.

Vede Murger, esse poeta lírico dos costumes fáceis, representando conscientemente seu papel nessa boemia que cantou. Vede Nerval, de cores estranhas, de estilo espalhafatoso e incoerente, fazendo fantasia com sua vida, como o fez com sua pena. Quantos deixo, e dos melhores, como Soulié e Balzac, cujas vidas e obras seguem caminhos paralelos! Mas creio que estes exemplos serão suficientes para não mais repelirdes, de modo tão absoluto, o meu aforismo: O estilo é o homem.

Não teríeis, caro abade, confundido a forma e o fundo, o estilo e o pensamento? Mas, ainda aí, tudo se acomoda.

Buffon. n


4. PERGUNTAS A BUFFON A PROPÓSITO DE SUA COMUNICAÇÃO.


P. – Agradecemos a espirituosa comunicação que houvestes por bem nos dar. Contudo, há algo que nos surpreende: é que estais a par dos mínimos detalhes da nossa literatura, apreciando obras e autores com notável precisão. Então ainda vos ocupais com o que se passa na Terra, desde que conheceis tudo isso? Ledes, pois, tudo quanto se publica? Tende a bondade de dar uma explicação, que será muito útil à nossa instrução.

Resposta. – Não precisamos de muito tempo para ler e apreciar; num único golpe de vista apanhamos o conjunto das obras que nos atraem a atenção. Todos nós nos ocupamos com muito interesse do vosso caro grupinho; daqueles a quem chamais homens eminentes, não acreditaríeis quantos acompanham, com benevolência, os progressos do Espiritismo. Assim, podeis pensar quanto me senti feliz por ver meu nome pronunciado por Lamennais, um de vossos fiéis Espíritos, e com que agilidade aproveitei a ocasião para me comunicar convosco. Com efeito, quando fui posto em causa em vossa última sessão, recebi, por assim dizer, o contragolpe do vosso pensamento e, não querendo que a verdade que eu havia proclamado em meus escritos fosse derrubada sem ser defendida, roguei a Erasto que me emprestasse seu médium para responder às asserções de Lamennais. Por outro lado, deveis compreender que cada um de nós permanece fiel às suas preferências terrenas, razão por que nós outros, escritores, estamos atentos ao progresso realizado pelos autores vivos, ou que eles pensam realizar na literatura. Assim como os Jouffroy,  †  os Laroque, os la Romiguière se preocupam com a filosofia, e os Lavoisier, os Berzélius, os Thénard com a química, cada um cultiva a sua mania e se recorda com amor de seus trabalhos, acompanhando com olhar inquieto o que fazem seus sucessores.


P. – Em poucas palavras apreciastes vários escritores contemporâneos, mortos ou vivos. Seríamos muito reconhecidos se nos désseis, sobre alguns deles, uma apreciação um pouco mais desenvolvida e mais metódica; seria muito útil para nós. Para começar, pediríamos que falásseis de Bernardin de Saint-Pierre; principalmente de seu Paulo e Virgínian cuja leitura havíeis condenado e que, no entanto, se tornou uma das obras mais populares.

Resposta. – Não posso aqui empreender o desenvolvimento crítico das obras de Bernardin de Saint-Pierre. Quanto à apreciação que fiz naquela época, posso confessá-lo hoje: eu era, como o Sr. Josse, um tanto perfeccionista; numa palavra, fiel ao espírito de camaradagem literária, desancava o quanto podia um importuno e importante concorrente. Mais tarde vos darei a minha verdadeira apreciação sobre esse eminente escritor, caso um Espírito realmente crítico, como Merle ou Geoffroy, não se encarregue de o fazer.

Buffon. n


5. DEFESA DE LAMENNAIS PELO VISCONDE DE LAUNAY.

(Médium – Sr. d’Ambel.)

Nota. – Na conversa havida na Sociedade sobre as comunicações precedentes, foi pronunciado o nome da Sra. de Girardin, a propósito do assunto em discussão, embora não tenha sido mencionada pelos Espíritos interlocutores. É o que explica o começo da nova intervenção.


— Nas últimas sessões, senhores espíritas, vós me pusestes ligeiramente em causa e creio que me destes o direito, como se diz no Tribunal, de intervir nos debates. Não foi sem prazer que ouvi a profunda dissertação de Lamennais e a resposta um tanto incisiva do Sr. Buffon. Mas falta uma conclusão a essa troca de argumentos. Assim, intervenho e me arvoro em juiz de campo, estribado na minha autoridade particular. Aliás, pedíeis um crítico. Respondo-vos: Cuidado ao me envolverdes nesta questão, porquanto, se bem vos lembrais, em vida desempenhei, de maneira considerada magistral, esse temível posto de crítico executivo. Agrada-me imensamente retornar a esse terreno tão amado. Assim, pois, era uma vez… mas, não; deixemos de lado as banalidades do gênero e entremos seriamente no assunto.

Senhor de Buffon, satirizais de maneira graciosa; vê-se logo que procedeis do grande século. Mas, por mais elegante que sejais como escritor, um visconde de minha raça não teme aceitar o desafio e enfrentar a pena convosco. Vamos, meu gentil-homem! Fostes muito duro para com esse pobre Lamennais, que tratastes como desclassificado! É culpa desse gênio extraviado se, depois de haver escrito com mão de mestre esse estudo admirável que lhe censurais, tenha-se voltado para outras regiões, para outras crenças? Certamente, as páginas da Indiferença em matéria de religião seriam assinadas com ambas as mãos pelos melhores prosadores da Igreja; mas se essas páginas permaneceram de pé quando o padre perdeu as estribeiras, não reconheceis a causa, logo vós, tão rigoroso? Ah! olhai Roma,  †  lembrai-vos de seus costumes dissolutos e tereis a chave dessa reviravolta que vos surpreendeu. Oh! Roma está tão longe de Paris!

Os filósofos, os investigadores do pensamento, todos esses rudes e incansáveis trabalhadores do eu psicológico jamais devem ser confundidos com os escritores de estilo impecável. Estes escrevem para o deleite do público, aqueles para a ciência impenetrável; estes últimos não se preocupam senão com a verdade; os outros não se vangloriam de ser lógicos: fogem à uniformidade. Em suma, o que buscam é o que vós mesmos buscáveis, meu belo senhor, isto é, a divulgação, a popularidade e o sucesso, que se resumem em belos escudos. Aliás, salvo isto, vossa resposta espirituosa é por demais verdadeira para que eu não a aplaudisse com todo o prazer. Apenas aquilo pelo qual tornais o indivíduo responsável, eu transfiro a responsabilidade ao meio social. Enfim, eu tinha de defender o meu contemporâneo que, como bem o sabeis, não participou de saraus, não frequentou cabarés, não transitou pelos pequenos salões das damas elegantes, nem, muito menos, tomou parte nas assembleias tumultuosas de baixa categoria. Alcandorado em sua mansarda, sua única distração era esmigalhar o pão e oferecer os pedacinhos aos pardais barulhentos que o vinham visitar em sua cela da rua de Rivoli.  †  Mas sua suprema alegria era sentar-se defronte da mesa pouco firme e fazer a pena vaguear sobre as folhas virgens de um caderno de papel!

Oh! certamente teve razão para se lamentar esse grande Espírito doente que, para evitar a sujidade de um século material, havia esposado a Igreja Católica e que, após tê-lo feito, encontrou a sujeira sentada nos degraus do altar. É culpa sua se, lançado jovem entre as mãos do clericato, não pôde sondar a profundeza do abismo onde o precipitavam? Sim, ele tem razão de manifestar os seus amargos lamentos, como dizeis. Não é a imagem viva de uma educação mal dirigida e de uma vocação imposta?

Padre renegado! Sabeis quantos burgueses ineptos lhe hão lançado ao rosto essa injúria, porque obedeceu às suas convicções e ao impulso da consciência? Ah! crede-me, feliz naturalista, enquanto corríeis atrás das mulheres e a vossa pena, célebre pela conquista do cavalo, era elogiada por lindas pecadoras e aplaudida por mãos perfumadas, ele subia penosamente o seu Gólgota!  †  Porque, assim como o Cristo, sorveu o cálice da amargura e carregou com dificuldade a sua cruz!

E vós, Sr. Buffon, não ofereceis um pouco o flanco à crítica? Vejamos. Ora essa! Vosso estilo é fanfarrão, como vós e, como vós, todo vestido de ouropéis! Mas, então, que intrépido viajante não fostes? Visitastes países!… não; bibliotecas desconhecidas? Que pioneiro infatigável! Desbravastes florestas!… não; manuscritos inéditos, jamais vistos! Reconheço que cobristes os vossos ricos despojos com um verniz brilhante, que é bem vosso. Mas de todos esses volumes enfadonhos, o que há de seriamente vosso como estudo, como fundo? A história do cão, do gato ou do cavalo, talvez? Ah! Lamennais escreveu menos que vós, mas tudo é realmente dele, Sr. Buffon: a forma e o fundo. Outro dia vos acusavam de haver ignorado o valor das obras do bom Bernardin de Saint-Pierre. Desculpaste-vos um tanto jesuiticamente; mas não dissestes que se recusastes vitalidade a Paulo e Virgínia foi porque, em obras desse gênero, ainda não estáveis na Grande Scudéri, no Grande Cyrus e no país do Tendre, enfim, em todos esses trastes sentimentais, que fazem tanto bem hoje aos alfarrabistas, esses negociantes de roupas da literatura. Ah! Sr. Buffon, começais a cair muito baixo na estima desses senhores, ao passo que o utopista Bernardin conservou uma posição elevada. A Paz Universal, uma utopia! Paulo e Virgínia, uma utopia! Vamos, vamos! Vosso julgamento foi anulado pela opinião pública. Não falemos mais disso.

Palavra de honra, tanto pior! Pusestes a pena em minha mão; uso-a e abuso. Isto vos ensinará, caros espíritas, a vos inquietardes com uma mulher pedante e aposentada como eu, e a pedir notícias minhas. Esse caro Scribe nos chegou de todo estupefato com esses últimos meio-sucessos; queria que nos erigíssemos em Academia. Falta-lhe a palma verde. Era tão feliz na Terra que ainda hesita em assumir a sua nova posição. Ah! ele se consolará vendo que suas peças voltam a ser apresentadas e, por algumas semanas, não aparecerá mais.

Ultimamente Gérard de Nerval vos deu uma encantadora fantasia inacabada. Esse Espírito caprichoso irá terminá-la? Quem sabe! Todavia, queria concluir que o verdadeiro do sábio não estando no verdadeiro, o belo do pintor não estando no belo e a coragem da criança sendo mal recompensada, ele fez muito bem em seguir os desvios de sua cara Fantasia.


Visconde de Launay. (Delphine de Girardin.) n


Nota. – Ver mais adiante Fantasia, por Gérard de Nerval.


6. RESPOSTA DE BUFFON AO VISCONDE DELAUNAY.


Convidais-me a voltar a um debate ao qual firmemente recusei, por não ter o que dizer. Confesso que prefiro ficar no ambiente sossegado onde me encontrava a me expor a semelhante incômodo. Em meu tempo a gente participava de uma brincadeira mais ou menos ateniense, mas hoje, que horror! vai-se a golpes de chicote chumbado. Obrigado! eu me retiro; tenho mais do que preciso, pois ainda estou completamente marcado pelos golpes do visconde. Havereis de concordar que, embora me tenham sido administrados com muita generosidade, pela graciosa mão de uma mulher, não são menos dolorosos. Ah! senhora, a mim lembrastes a caridade de maneira muito pouco caridosa. Visconde! sois muito temível; deponho as armas e humildemente reconheço meus erros. Concordo que Bernardin de Saint-Pierre foi um grande filósofo. Que digo? Encontrou a pedra filosofal e eu não sou, como não fui, mais que um indigesto compilador! E então? Estais contente agora? Vejamos, sede gentil e doravante não me humilheis mais; não sendo assim, obrigareis um gentil-homem, amigo do nosso grupo parisiense, a abandonar a praça, o que não faria sem grande pesar, porque ele tem de aproveitar também os ensinamentos espíritas e conhecer o que aqui se passa.

Ah! Hoje ouvi o relato de fenômenos tão estranhos que em meu tempo teriam sido queimados vivos, como feiticeiros, os atores e até os narradores desses acontecimentos. Aqui, entre nós, serão mesmo fenômenos espíritas? A imaginação de um lado e o interesse do outro não valerão alguma coisa? Eu não juraria. Que pensa o espirituoso visconde? Quanto a mim, lavo as mãos. Aliás, se creio no meu senso de naturalista, por mais que me chamem naturalista de gabinete, os fenômenos dessa ordem só devem ocorrer raramente. Quereis minha opinião sobre o caso de Havana? Pois bem! lá existe uma camarilha de gente mal-intencionada, que tem todo o interesse em desacreditar a propriedade, a fim de que possa ser vendida a preço vil, e proprietários medrosos e tímidos, apavorados com uma fantasmagoria muito bem preparada. Quanto ao lagarto: lembro-me bem de lhe haver escrito a história, mas confesso jamais os ter encontrado diplomados pela Faculdade de Medicina. Há aqui um médium de cérebro fraco, que tomou de sua imaginação fatos que, em substância, não tinham nenhuma realidade.

Buffon. n


Nota. – Este último parágrafo faz alusão a dois fatos narrados na mesma sessão; por falta de espaço, adiaremos a sua transcrição para outro número. A respeito, Buffon dá espontaneamente a sua opinião.


7. RESPOSTA DE BERNARDIN DE SAINT-PIERRE.

(Médium – Sra. Costel.)

Venho eu, Bernardin de Saint-Pierre, envolver-me num debate em que meu nome foi citado, discutido e defendido. Não posso concordar com meu espirituoso defensor; o Sr. de Buffon tem um outro valor, que não o de um compilador eloquente. Que importam os erros literários de um julgamento muitas vezes tão fino e delicado para as coisas da Natureza e que não foi desviado senão pela rivalidade e o ciúme profissional?

Apesar disso, sou de opinião inteiramente contrária à sua e, como Lamennais, digo: Não, o estilo não é o homem. Disto sou uma prova eloquente, eu, cuja sensibilidade jazia completa no cérebro, inventando o que os outros sentiam. As coisas da vida terrena, as coisas acabadas são julgadas com frieza do outro lado da vida. Não mereço toda a reputação literária de que desfrutei. Se aparecesse hoje, Paulo e Virgínia seria facilmente eclipsado por uma quantidade de encantadoras produções, que passam despercebidas. É que o progresso de vossa época é grande, mais que vós, contemporâneos, podeis julgar. Tudo se eleva: ciências, literatura, arte social; mas tudo se eleva como o nível do mar na enchente da maré, e os marinheiros que estão ao largo não o podem julgar. Estais em alto-mar.

Volto ao Sr. Buffon, cujo talento louvo, esquecendo a censura, e também ao meu espirituoso defensor, que sabe descobrir todas as verdades, seus sentidos espirituais, dando-lhes um colorido paradoxal. Depois de haver provado que os literatos mortos não conservam nenhum fel, dirijo-vos os meus agradecimentos, assim como o vivo desejo de vos poder ser útil.

Bernardin de Saint-Pierre. n


8. LAMENNAIS A BUFFON.

(Médium – Sr. A. Didier.)

É preciso prestar muita atenção, Sr. Buffon; eu não conclui absolutamente de maneira literária e humana; encarei a questão de modo muito diverso e o que deduzi foi isto: “Que a inspiração humana muitas vezes é divina”. Aí não havia matéria para nenhuma controvérsia. Agora não mais escrevia com essa pretensão, e podeis vê-lo mesmo em minhas reflexões sobre a influência das artes, o coração e o cérebro. n Evitei o mundo e as personalidades; jamais volvamos ao passado; olhemos o futuro. Cabe aos homens julgar e discutir as nossas obras; a nós compete dar outras, emanando todas desta ideia fundamental: Espiritismo. Mas, para nós: adeus ao mundo!

Lamennais. n


9. FANTASIA — POR GÉRARD DE NERVAL.

(Médium – Sr. A. Didier.)

Nota. – Lembramos que Buffon, falando dos autores contemporâneos, disse que “Gérard de Nerval, de cores estranhas, de estilo espalhafatoso e incoerente, fazia fantasia com sua vida, como o fez com sua pena.” Em vez de discutir, Gérard de Nerval respondeu a esse ataque ditando espontaneamente o trecho seguinte, ao qual ele próprio deu o título de Fantasia. Escreveu em duas sessões, e foi no intervalo que ocorreu a resposta do Visconde de Launay n a Buffon; eis por que disse ele não saber se esse caprichoso Espírito o acabaria, dando a sua provável conclusão.

Não o pusemos em ordem cronológica, a fim de não interromper a série de ataques e réplicas, considerando-se que Gérard de Nerval não se envolveu nos debates senão por esta alegoria filosófica:


— Um dia, numa de minhas fantasias, não sei como, cheguei perto do mar, num pequeno porto pouco conhecido; que importa! Por algumas horas eu havia abandonado meus companheiros de viagem e pude entregar-me à mais tempestuosa fantasia, que é o termo consagrado às minhas evoluções cerebrais. Todavia, não se deve crer que a Fantasia seja sempre uma menina louca, entregue às excentricidades do pensamento. Muitas vezes a pobre mocinha ri para não chorar e sonha para não cair. Frequentemente seu coração está ébrio de amor e de curiosidade, enquanto sua cabeça se perde nas nuvens; talvez seja porque muito ama, essa pobre imaginação. Deixai-a, pois, vaguear, pois ama e admira.

Assim, eu estava com ela um dia, a contemplar o mar, cujo horizonte é o céu, quando, em meio à minha solidão a dois avistei — palavra de honra! um velhinho condecorado. Tivera tempo de o ser, felizmente, pois estava muito abatido; mas seu ar era tão positivo, tão regulares os movimentos, que essa sabedoria e essa harmonia, em sua aparência, substituíam os nervos e os músculos entorpecidos. Sentou-se, examinou bem o terreno e assegurou-se de que não seria picado por um desses bichinhos que pululam na areia da praia; depois deixou de lado sua bengala de castão dourado; mas imaginai o meu espanto quando ele colocou os óculos. Óculos! para ver a imensidade! Fantasia deu um salto terrível e quis atirar-se sobre ele. Consegui acalmá-la com muita dificuldade; aproximei-me, oculto por uma rocha e apurei os ouvidos para melhor escutar: “Eis, então, a imagem de nossa vida! Eis o grande todo! Profunda verdade! Eis, pois, nossas existências, elevadas e baixas, profundas e mesquinhas, revoltadas e calmas! Ó vagas! vagas! Grande flutuação universal!” Depois o velhinho só falou para si mesmo. Até então Fantasia mantivera-se calma e ouvia religiosamente; porém, não se contendo mais, soltou uma longa gargalhada. Só tive tempo de tomá-la nos braços e abandonamos o velhinho. “Na verdade — dizia Fantasia — ele deve ser membro de alguma sociedade erudita: Depois de ter corrido durante algum tempo, percebemos uma tela de pintor, representando uma falésia a mergulhar no mar. Olhei, ou antes, olhamos a tela. Provavelmente o pintor procurava outro sítio nas redondezas. Após olhar a tela, fitei a Natureza e assim alternativamente. Fantasia quis rasgar a tela; só à custa de muito esforço pude contê-la. — “Como! disse-me ela, são sete horas da manhã e vejo nesta tela um efeito que não tem nome!” Compreendi perfeitamente o que Fantasia me explicava. Realmente essa menina maluca tem senso, dizia a mim mesmo, querendo afastar-me. Ah! escondido, o artista tinha seguido as menores nuanças de minha expressão; quando seus olhos encontraram os meus, foi um choque terrível, um choque elétrico. Lançou-me um desses olhares soberbos, que parecem dizer: “Vermezinho!” Dessa vez Fantasia ficou aterrada por tanta insolência e o viu retomar a paleta com estupefação. “Tu não tens a paleta da Lorena”, disse-lhe ela, sorrindo.

Depois, voltando-se para mim: “Já vimos o verdadeiro e o belo — falou-me ela — procuremos, então, um pouco o bem.” Após ter escalado as falésias, avistei um menino, um filho de pescador, que bem poderia ter treze ou quatorze anos; brincava com um cachorro e corriam um atrás do outro, este a latir, aquele a bradar. De repente, ouvi gritos no ar, que pareciam vir de baixo da falésia; imediatamente o menino atirou-se, de um salto só, por um atalho que levava ao mar. Apesar de todo o seu ardor, Fantasia teve dificuldade em segui-lo. Quando cheguei na parte inferior da falésia, vi um espetáculo terrível: o menino lutava contra as vagas e trazia para a costa um infeliz que se debatia contra ele, seu salvador. Eu quis atirar-me, mas o garoto gritou que nada fizesse; e, ao cabo de alguns instantes, magoado, deprimido e trêmulo, aproximava-se com o homem que havia salvado. Era, ao que tudo indica, um banhista que se tinha aventurado muito longe e caíra numa corrente.

Continuarei de outra vez.

Gérard de Nerval. n


Nota. – Foi nesse intervalo que ocorreu a comunicação do Visconde de Launay, reportada acima.


CONTINUAÇÃO.

Depois de alguns instantes o afogado, pouco a pouco, voltava à vida, mas apenas para dizer: “É incrível; logo eu, que nado tão bem!” Viu perfeitamente quem o havia salvado, mas, olhando-me, acrescentou: “Ufa! escapei por pouco! Como sabeis, há certos momentos em que perdemos a cabeça; não são as forças que nos traem, mas… mas…” Vendo que não podia continuar, apressei-me em lhe dizer: “Enfim, graças a este bravo rapaz, eis-vos salvo.” Ele olhou o garoto, que o examinava com o ar mais indiferente do mundo, mãos na cintura. O senhor pôs-se a sorrir: “Contudo é verdade”, disse, saudando-me em seguida. Fantasia quis correr atrás dele. “Deixa pra lá!”, disse ela, mudando de ideia, “de fato é muito natural.” O rapazola o viu afastar-se, depois voltou ao seu cão. Desta vez Fantasia chorou.

Gérard de Nerval. n


Tendo um membro da Sociedade observado que faltava a conclusão, Gérard acrescentou estas palavras:

“Encontro-me à vossa disposição, de todo o coração, para dar outro ditado; mas, quanto a este, Fantasia me diz que pare aqui. Talvez esteja errada; ela é tão caprichosa!”

A conclusão havia sido dada antecipadamente pelo Visconde de Launay.


10. CONCLUSÃO DE ERASTO.


Depois do torneio literário e filosófico ocorrido nas últimas sessões da Sociedade, ao qual assistimos com vera satisfação, julgo necessário, do ponto de vista puramente espírita, comunicar-vos algumas reflexões, que me foram suscitadas por esse interessante debate, no qual, aliás, não quero intervir de modo nenhum. Antes de mais, porém, deixai que vos diga que, se vossa reunião foi animada, esta animação nada significou em relação à que reinava entre os grupos numerosos de Espíritos eminentes, que essas sessões, quase acadêmicas, tinham atraído. Ah! certamente se vos tivésseis tornado vidente instantaneamente, teríeis ficado surpreso e confuso perante esse areópago superior. Mas não é minha intenção desvendar-vos hoje o que se passou entre nós; meu objetivo é unicamente fazer que entendais algumas palavras sobre o proveito que deveis tirar dessa discussão, no que respeita à vossa instrução espírita.

Conheceis Lamennais há muito tempo e, certamente, apreciastes o quanto esse filósofo continuou apaixonado pela ideia abstrata; sem dúvida notastes o quanto ele acompanha com persistência, e com talento — devo dizê-lo — suas teorias filosóficas e religiosas. Logicamente deveis deduzir que o ser pessoal pensante prossegue, mesmo depois da tumba, seus estudos e trabalhos e que, por meio dessa lucidez que é o apanágio particular dos Espíritos, comparando seu pensamento espiritual com o seu pensamento humano, deve eliminar tudo quanto o obscurecia materialmente. Muito bem! o que é verdadeiro para Lamennais, o é igualmente para os outros, e cada um, no vasto país da erraticidade, conserva suas aptidões e sua originalidade.

Buffon, Gérard de Nerval, o Visconde de Launay, Bernardin de Saint-Pierre conservam, como Lamennais, os gostos e a forma literária que observáveis neles, quando vivos. Creio útil chamar vossa atenção sobre essa condição de ser do nosso mundo de além-túmulo, para que não venhais a crer que abandonamos instantaneamente nossas inclinações, costumes e paixões quando despimos as vestes humanas. Na Terra, os Espíritos são como prisioneiros, que a morte deve libertar; no entanto, assim como aquele que está sob grades tem as mesmas propensões, conserva a mesma individualidade quando em liberdade, os Espíritos conservam suas tendências, originalidade e aptidões, ao chegarem entre nós. Contudo, à exceção dos que passaram, não por uma vida de trabalho e de provas, mas por uma vida de expiação, como os idiotas, os cretinos e os loucos, suas qualidades inteligentes, mantidas em estado latente, não despertam senão à saída da prisão terrestre. Como pensais, isto deve entender-se do mundo espírita inferior ou médio, e não dos Espíritos elevados libertos da influência corporal.

Ides tomar as vossas férias, senhores associados. Permiti que vos dirija algumas palavras amigas, antes de nos separarmos por algum tempo. Creio que a doutrina consoladora que vos viemos ensinar só conta, entre vós, com adeptos fervorosos. Eis por que, como é essencial que cada um se submeta à lei do progresso, julgo dever aconselhar-vos a examinar, perante vós, que proveito haveis tirado pessoalmente de nossos trabalhos espíritas, e que progresso moral disso resultou em vossos meios recíprocos. Porque — bem o sabeis — não basta dizer: Sou espírita, e encerrar essa crença no seu íntimo; o que vos é indispensável saber é se vossos atos estão de acordo com as prescrições de vossa nova fé, que, nunca seria demais repetir, é Amor e caridade. Que Deus seja convosco!

Erasto. n



[1] [v. Lamennais.]


[2] N. do T.: Liga – Alusão ao movimento político-religioso que se opôs a Henrique III (Valois) e prosseguiu contra seu sucessor e ex-cunhado, Henrique IV (Bourbon), no período mais exacerbado das chamadas Guerras de Religião, na França.


[3] [v. Buffon.]


[4] Paul et Virginie (em português: Paulo e Virgínia) é um romance escrito em 1787, por Bernardin de Saint-Pierre, escritor francês. Quando Paulo e Virgínia foi publicado, em 1788, teve tão grande êxito que foi traduzido, desde então, para diversos idiomas, entre eles o inglês, alemão, espanhol, grego, polonês, italiano, armênio, português, húngaro, holandês e russo, passando a pertencer ao domínio público internacional, tornando-se um clássico da literatura universal. — Continue esta resenha bibliográfica na Web.  † 


[5] Alusão a uma série de comunicações ditadas por Lamennais, sob o título de Meditações filosóficas e religiosas, que publicaremos no próximo número.


[6] N. do T.: Ora aparece grafado Visconde Delaunay, ora Visconde de Launay (Delphine de Girardin). Preferimos esta última.


[7] [v. Gérard de Nerval.]


[8] [v. Erasto.]


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